- por Pedro Antunes, revista Rolling Stone
A maior banda do mundo em 1993 chegou com uma comitiva relativamente pequena ao estúdio BMG-Ariola, no Rio de Janeiro, naquele dia 19 de janeiro. Dois seguranças brasileiros razoavelmente fluentes em inglês cercavam Kurt Cobain, Krist Novoselic e Dave Grohl, o Nirvana. Courtney Love e a recém-empossada baterista do Hole, Patty Schemel, eram constantes apêndices do grupo completado pelo produtores Ian Beveridge e Craig Montgomery. O carioca Dalmo Belloti, hoje também produtor e compositor, foi escalado pela gravadora para ser o engenheiro de som daquelas sessões. Durante três dias, os trabalhos se iniciavam à tarde, às 16h, e duravam até a madrugada. Nos intervalos, enquanto Grohl e Patty conversavam sobre o instrumento que tocavam em comum, Cobain levava Courtney para o estúdio número 1 e deitavam la por horas. "Talvez estivessem dormindo", sugere Belloti.
A dinâmica do Nirvana é traduzida por três estereótipos: "o quietão, Kurt Cobain, "o cara normal", Krist Novoselic, e "o brincalhão", Dave Grohl. Era Cobain quem comandava o precesso, ainda que com frases curtas e pouco espaço para diálogo. "Vamos tocar mais uma?", dizia o vocalista e guitarrista ao ouvir algumas demos registradas ali, sentado no chão em um canto distante da mesa de som Neve 1073. O Nirvana fez questão de gravas as demos em 24 canais, em fitas de 2 polegadas. Belloti lembra de ter estranhado tamanho preciosismo. Ele nao sabia que, ao final daqueles três dias de gravações, a banda pediria para levar embora os oito rolos com mais de 20 horas de material. Belloti também não imaginava, mas ali começava a ser gerado In Utero, o derradeiro disco do grupo.
O Nirvana estava no Brasil para duas apresentações tão lendárias quanto displicentes, nos dias 16 de janeiro, no Estádio do Morumbi, e 23 do mesmo mês, na Praça da Apoteose, dentro do extinto festival Hollywood Rock. "Era como se fosse a Beatlemania˜, conta Patty. ˜Para entrar e sair dos lugares, precisávamos ser escoltados pelos policiais. "
Nesses shows, foram apresentados pela primeira vez rascunhos do que estaria em In Utero, como “Heart-Shaped Box” – primeiro single do álbum ainda inédito –, tocado ao vivo e registrado também no estúdio BMG-Ariola. Uma das versões testadas pelo trio naqueles três dias de experimentos no Rio chegou a ser lançada na caixa With the Lights Out, juntamente com “I Hate Myself and I Want to Die”, “Milk It”, “Moist Vagina”, “Gallons of Rubbing Alcohol Flow Through the Strip” e “The Other Improv”. Steve Albini, produtor de In Utero, recebeu aquele material bruto para se familiarizar com as faixas que ajudaria o Nirvana a gravar. Canções que entraram no álbum, como “Heart-Shaped Box” e “Milk It”, sofreram poucas alterações perto do que foi gravado por Belloti meses antes. “No Rio, as músicas ainda não tinham títulos. Eram um esboço do que se tornaria In Utero”, relembra Patty. “Tudo estava bem ensaiado por causa da pré-produção e das demos no Rio de Janeiro”, conta Albini, surpreso ao perceber o quão bem preparado estava o grupo quando chegou ao Pachyderm Studio, em Cannon Falls (Minnesota). “A performance era mais confiante no disco”, compara.
A mesa de som Neve 1073 do estúdio carioca chamou a atenção de Ian Beveridge e Craig Montgomery. Meses depois, quando o Nirvana já estava de volta aos Estados Unidos, a sede brasileira da BMG recebeu uma proposta: US$ 1 milhão pela mesa, conforme recorda Belloti. A venda nunca aconteceu. Anos mais tarde, Dave Grohl dedicaria boa parte de seu documentário,Sound City, para louvar uma mesa de som da mesma marca – da qual hoje ele é dono. E foi usando esse equipamento que os remanescentes do Nirvana fizeram uma rara reunião em estúdio – com uma pequena ajuda de Sir Paul McCartney – para gravar a faixa “Cut Me Some Slack”.
Mas os fãs do Nirvana podem sentir como as gravações cariocas funcionaram até mesmo na versão final de In Utero: “Gallons of Rubbing Alcohol Flow Through the Strip”, um improviso de 7 minutos que esparrama distorção e os murmúrios de Cobain, saiu pronta do Rio e se tornou a faixa bônus da versão internacional do disco (a mesma que saiu no Brasil). Na metade da faixa, o cantor pergunta “Mais um solo?” antes de gritar e voltar a se perder pelas cordas da guitarra. Belloti, por sua vez, nunca recebeu os créditos por aquela gravação. Na época, ele trabalhava para a BMG e, por “saber se virar melhor no inglês”, era sempre o escolhido quando artistas estrangeiros queriam usar o estúdio. Para ele, aquelas sessões eram mais ensaios do que qualquer outra coisa.
Difícil de ser encontrado, longe da mídia e quase um anônimo na internet, Dalmo Belloti atualmente possui créditos de músicas em parceria com Latino, como “Festa no Apê”. “Eu não ligo muito para isso, entende? Eles simplesmente pediram as fitas com as gravações e eu dei. Afinal, era o Nirvana”, ele diz. As gravações não aconteceram ao acaso. “Eles sabiam o que estavam fazendo”, diz Patty.
O produtor também se lembra claramente da mania de Cobain em beber café preto sem açúcar. “Eu não entendia o que ele falava, ele dizia: ‘Just black’. Eu não conhecia essa expressão”, conta, rindo. O astro também pareceu feliz ao experimentar os biscoitos disponíveis no estúdio. Com exceção disso, Cobain se recolhia a si mesmo. Courtney mal falava durante o período em que a banda esteve gravando. Mais agitada era Patty Schemel, que grudou no brincalhão Grohl. “Era como se ela estivesse vendo um ídolo ali”, relembra o brasileiro. Ela responde: “Eu tinha ficado impressionada com o início de uma das músicas, aquela bateria: ‘bum-bum-ti-bum-bum-bam’”, conta a baterista, imitando o começo de “Scentless Apprentice". O sorriso largo de Grohl destacava ainda mais a introspecção de Cobain. “O Dave batucava nas minhas costas”, continua Belloti. No último dia no estúdio, o baterista entregou ao engenheiro fotografias recém-reveladas que registravam aqueles momentos, como uma na qual a calcinha de Courtney aparecia enquanto ela se esparramava no chão com o vocalista. “Essa eu perdi, porque enviei para um grande jornal, anos atrás, e nunca me devolveram”, ele conta.
Cobain não deu indícios do que viria a acontecer em 1994, quando se suicidou. Para Belloti, parecia ser apenas um sujeito quieto, mas afável. A presença de Courtney, ele analisa, também teria funcionado como um inibidor da personalidade do líder. Mesmo que a passagem pelo Brasil tenha evidenciado um artista rumo à autodestruição, com notícias de abusos de drogas e festas loucas, Cobain era bastante centrado no estúdio. “Se houve o uso de drogas, foi escondido”, diz o produtor. “A bebida era água mineral e café.” O mundo poderia estar atrás deles, mas, naquele estúdio escondido em Copacabana, o Nirvana parecia estar em paz.
As bases foram gravadas em duas semanas; quase todos os vocais de Kurt Cobain foram registrados em fita em um total de sete horas. Se In Utero é um disco nascido de uma enorme crise – em grande parte a guerra pessoal de Cobain contra a sufocante onda de sorte que tomou a vida dele – foi, por outro lado, feito com um propósito concentrado. A produção quanto-mais-corrosiva-melhor de Steve Albini não é a mais indicada em faixas mais cadenciadas, de vários níveis de dramaticidade, como “Pennyroyal Tea”. Mas o toque ácido do produtor caiu perfeitamente bem no extremismo com que Cobain já havia composto petardos como “Serve the Servants”, “Scentless Apprentice” e “Very Ape”. Na tristeza iluminada do violoncelo de “All Apologies” e “Dumb”, Cobain também deixava claras suas enormes necessidades e diminutas expectativas de satisfação. No fim, o vocalista se provou incapaz de escapar do pânico que o cercava; em vez disso, transformou seus temores em uma arte furiosa e de primeira qualidade.
Por telefone – antes de começar mais uma sessão de gravação em seu estúdio em Chicago, o Electrical Audio –, Albini relembrou as gravações do último disco do Nirvana.
Você nunca havia encontrado o Nirvana antes de gravar In Utero. Como foi esse primeiro contato para produzir o disco? Quais eram as suas ideias para o disco quando ligaram para você?
O contato inicial foi com Kurt. Ele me ligou. Eu escrevi uma carta para a banda explicando como eu normalmente trabalho, dizendo que se eles quisessem que eu trabalhasse com eles, seria daquela forma, entende? Basicamente expliquei a minha filosofia de estúdio. Quando nos encontramos lá, todos meio que já sabiam como funcionaria. A ideia seria que fosse gravado com a banda tocando ao vivo, além de coisas extras que eles quisessem. Mas a gravação inicial seria tocando no estúdio. E foi assim. Tudo começou a partir disso.
Eles responderam a essa carta, ou seja, disseram também como queriam que o álbum soasse?
Não, eles já conheciam outros discos que eu havia gravado e eram amigos de outras bandas que gravei.
Quais bandas?
Eles conheciam o The Jesus Lizard, gravei com eles várias vezes. O Nirvana também tinha feito uma turnê com Urge Overkill, com quem trabalhei. Eles conheciam bandas amigas minhas de Minneapolis. E, quando cheguei ao estúdio, entreguei a eles uma cópia do disco da PJ Harvey [Rid of Me] que havia feito naquele ano, naquele mesmo estúdio, para dar a eles uma ideia do som de lá.
Então a ideia da banda foi soar mais poderosa no estúdio, é isso?
O primeiro disco deles [Bleach, 1989] foi uma versão bruta e punk rock do que eles fizeram no estúdio; o segundo [Nevermind, 1991] foi mais polido e mais profissional, com uma produção mais pop. Neste, o conceito principal era uma gravação de alta qualidade, mas de forma bastante natural. Menos estilizada do que a do anterior e menos primitiva que a do primeiro disco. Essa foi a ideia.
E o álbum acabou gravado em duas semanas. Houve alguma pressa para terminá-lo?
Não, esse foi o tempo que demoramos para gravar. Foi o tempo que achei que levaria. A gravadora não deu um tempo limitado para que eles gravassem. A gravadora, aliás, ficaria feliz se a banda passasse vários meses trabalhando no disco. A ideia era uma gravação bem básica e natural. E isso simplesmente não demanda tanto tempo para ser feito.
Dizem que a banda havia estabelecido este deadline para a gravação do disco.
Eles tinham muitas músicas para gravar, algo em torno de uma hora de som. Mas eles estavam muito preparados e as coisas foram rápido no estúdio. Terminamos tudo em 12 dias ou algo assim.
Quais foram as suas primeiras impressões sobre o Nirvana? Como funcionava a banda?
Eles me pareceram caras de uma banda normal. Tinham uma postura boa, eram divertidos, sabe? Eles gostavam uns dos outros, gostavam da música deles, gostavam do que estavam fazendo. Instantaneamente, tivemos uma boa relação. Quero dizer, nós não nos tornamos amigos próximos para o resto da vida, mas acho que seria presunçoso da minha parte querer fazer com que isso acontecesse. Mas nós nos demos bem, as gravações seguiram sem problemas e todos se divertiram.
Nevermind tornou o Nirvana gigantesco. As gravações de In Utero foram as primeiras após essa explosão de popularidade. Você acha que eles precisaram tirar um tempo para relaxar, esquecer a pressão e fazer com que as coisas voltassem a ser como eram antes?
O disco foi gravado em um estúdio isolado e isso foi intencional. A banda conseguiria ficar essencialmente sozinha e trabalhar nas músicas sem a interferência do povo da gravadora ou qualquer outro que fosse distraí-los, entende? Era tudo muito... Como dizer?
Profissional, talvez?
Na verdade, com a banda, foi algo muito informal. Mas a ideia era que fossem apenas os caras da banda fazendo um disco. Foi uma decisão consciente para manter as coisas da forma mais simples possível. Fazer com que ninguém, a não ser eles, tivesse influência no produto final. Foi a ideia desde o começo.
Qual é a primeira coisa que vem à mente quando falamos do In Utero? Qual é a sua principal lembrança?
Bom, eu tenho muito orgulho do progresso e da forma como o disco foi feito. Eu sinto que a banda fez um ótimo trabalho, eles estavam muito bem preparados. Da minha parte, sinto que os tratei bem e eles conseguiram um bom resultado. Eu realmente não tenho perspectiva específica além do fato de que todos fizeram um bom trabalho e um disco do qual podem se orgulhar.
Entendo, mas me referia a alguma cena ou momento dentro daquele período de 12 dias que lhe tenha sido marcante. Algo que esteja na sua memória 20 anos depois.
Para falar a verdade, para mim, foi um disco quase como qualquer outro com o qual eu trabalhei. Acho que fiz um bom trabalho, tenho orgulho dele, coisas assim. Mas, para ser honesto, não teve nada de especial.
Por se tratar do Nirvana, que então era gigante, foi difícil ou mais fácil de trabalhar?
Foram sessões muito normais. A banda chegou, nós dissemos “olá”, montamos o equipamento e gravamos. Como qualquer outro. Foi muito normal. Eu tenho boas memórias dessas sessões, porque foram divertidas e tenho orgulho dele, porque afinal é algo de que qualquer um poderia se sentir orgulhoso, mas não foi especial. Eu acho que é um bom disco. Não conhecia muito bem o Nirvana, então sinto-me bem quando vou ouvir as músicas e percebo que há algo especial. A banda fez um bom trabalho, mas não acho que minha participação foi importante. Aquele disco seria muito bom produzido por qualquer um.
Alguma música foi mais trabalhosa e precisou de mais ajustes?
Nada foi muito difícil. Eles fizeram versões diferentes de “Pennyroyal Tea”. Eu não diria que ela foi difícil. A banda queria que ela tivesse um tipo específico de som e precisou de algumas tentativas até chegar a um resultado de que gostassem. Não foi difícil, contudo.
Vocês tinham ideia de que “Rape Me” fosse gerar tanta polêmica?
No estúdio, ninguém pensou que essa música teria algo de especial. Era, claro, uma boa música, mas ninguém pensou que haveria uma controvérsia com ela.
Eu gostaria de saber mais sobre Kurt no estúdio. Como era a relação dele com os companheiros de banda? Ele parecia feliz?
Obviamente, sabe-se que ele tinha problemas com drogas, mas durante o período em que gravávamos o disco ele estava muito produtivo, muito limpo. Como eu disse, esse período da banda foi muito produtivo. Então, é o que eu posso dizer. Eu não era um amigo próximo da banda, então eu não sei dizer precisamente o que mais acontecia na vida deles. No período em que estávamos fazendo o disco, tudo parecia ir bem. Todos se davam bem, havia muita camaradagem entre os três.
Você, então, como uma pessoa que havia acabado de conhecê-los, como entendia a dinâmica entre eles? Quem era o brincalhão?
Eles pareciam uma banda normal, como caras de banda. Contavam piadas, era divertido estar próximo deles. Eles gostavam de passar trotes ao telefone, estavam aproveitando o tempo.
In Utero acabou se tornando o último disco “oficial” do Nirvana. Você sentia que seria especial neste sentido?
Para a minha audição, foi um disco especial. Foi mais especial do que os anteriores. No ponto de vista musical, foi mais agressivo, mais pessoal. Eu gostei do disco como um fã. E não senti isso sobre os outros do Nirvana. Ninguém sabia que aquele seria o último disco.
Você disse que as sessões fluíram bem, a banda tinha todas as músicas ensaiadas. Mas e Kurt, parecia focado?
Durante as gravações, tudo foi legal. Não houve problema, não houve briga, não houve nada diferente. Depois delas, depois que tudo estava terminado, as pessoas da gravadora e algumas pessoas que trabalhavam com o Nirvana não ficaram felizes com o resultado. E essas pessoas foram pressionar a banda para tentar mudar algumas coisas.
Mas eles chegaram a enviar as demos para a gravadora Geffen durante as gravações?
Ninguém ouviu nada até estar pronto. E, então, os caras da gravadora estavam com medo do disco, porque não foi feito da forma convencional: com um produtor profissional, passando muito tempo no estúdio, gastando muito dinheiro, envolvendo a gravadora. Não foi feito nesses moldes, então todos estavam agindo com muito medo.
É um som bastante cru, com guitarras muito pesadas e letras contundentes. A gravadora queria um álbum mais pop e limpo como foi Nevermind?
Honestamente, acho que nenhum deles tinha uma ideia preconcebida sobre o disco. Não tinham uma ideia de estética ou uma sonoridade definida. Tudo o que eles queriam é que fosse feito na fórmula normal e por isso ficaram aterrorizados.
Eles quiseram remixar todas as faixas?
A gravadora queria refazer o disco inteiro. Queriam que a banda abandonasse o disco e começasse de novo. Tudo porque não fizeram da forma convencional.
Então o problema não foi a forma como o disco soou para eles...
Não, eles [os executivos] queriam que a gravadora estivesse envolvida nas decisões desde o começo. É praticamente um problema político. Não tinha nada a ver com a performance, o estilo ou a música. Era tudo político. Queriam que a banda fizesse de uma forma convencional: queriam que eles fossem a um grande estúdio, com um produtor profissional, gastar muito tempo e dinheiro. Queriam que as pessoas da gravadora ouvissem as faixas todos os dias. Esse é o procedimento comum de estúdio. E é com isso que eles ficariam felizes.
No período em que a gravadora pressionou, você conversou com a banda sobre isso?
Durante as gravações, ninguém ouviu as músicas. Depois disso, houve uma campanha silenciosa por parte da gravadora para que eles refizessem o disco.
Sim, mas vocês conversaram durante esse período em que a gravadora pressionou a banda? Como eles reagiram?
Sim. Falava com eles e eles me contaram. Eles continuaram tomando as decisões deles.
Courtney Love esteve presente nas gravações? A presença dela...
[Interrompe] Quem?
Courtney Love.
Ah, sim. Ela não estava lá no começo, mas chegou no fim das gravações.
E a presença dela? Mudou algo com ela por ali, dentro do estúdio?
Mudou um pouco, sim.
Como foi?
Eu não quero falar sobre Courtney Love.
Ok.
Não tenho nada para falar sobre ela.
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