enviado por: Archimedes Marques
(Delegado de Policia no Estado
de Sergipe. Pós-Graduado em Gestão
Estratégica
de Segurança Pública
pela Universidade Federal de Sergipe)
– archimedes-marques@bol.com.br
Há algum tempo atrás
um cidadão aparentando ter pouco mais de trinta anos, vagava pelas ruas
centrais de Aracaju, como de costume, pois noutra vez eu já tinha observado os
seus passos nas mesmas cercanias. Mostrava estar triste e deprimido como nunca,
talvez como sempre. O dia de sábado era como outro qualquer na sua vida e na
vida da cidade, pois o vento que soprava quente era o mesmo, o sol abrasante e
causticante a tudo esquentar era o mesmo, as pessoas indiferentes, passando de
um lado para o outro das ruas e nas calçadas, afastando-se do citado cidadão em
misto de medo e asco eram as mesmas, a agencia bancaria a qual ele entrara era também
a mesma.
Entretanto, aquele
carrancudo cidadão, barbudo, cabeludo, sujo, maltrapilho, esquelético,
parecendo seriamente doente me lembrava de alguém, alguém conhecido, alguém que
um dia já mantivera algum tipo de contato verbal comigo, mas, por mais que eu tentasse me lembrar
de quem seria aquela misteriosa pessoa não conseguia. Demasiadamente curioso, dessa
vez olhei mais demoradamente para aquele estranho e intrigante cidadão enquanto
ele tirava dinheiro no cash do banco no mesmo instante em que as outras pessoas
que ali estavam presentes trataram de fugir do recinto pensando ser ele um assaltante,
um bandido ou delinquente qualquer, talvez um maluco andarilho.
Ele não demostrou
surpresa pelo fato das pessoas assim agirem, parecia acostumado com isso, com
essa humilhação, sabia que a sua aparência era assustadora apesar de saber que
não era um marginal, parecia não estar ali naquele momento, noutro mundo, não
ligar para o que acontecia a sua volta, parecia nada temer, talvez se a Terra
explodisse para ele seria normal. Temia somente um novo ataque de bronquite que
se avolumava no seu pulmão devido a tosse grossa e pesada que insistia na sua
garganta a fazer tremer a sua longa e imunda barba que carregava em igual modo
com o seu cabelo escarafunchado e embuchado tal qual uma casa de cupim.
As suas perspectivas eram as
piores possíveis. Certamente mergulhado em pensamentos pessimistas, nem sequer
notou que eu sem disfarçar tanto olhava para ele querendo me lembrar de onde o
conhecia, até que o guarda do banco chegou de um possível cafezinho e me falou:
- Tá vendo o que o crack faz? ... Ele era um Advogado!...
Foi aí que tudo emergiu,
veio à tona; foi ai que tudo me chegou à mente; foi ai que o mistério foi
revelado; foi ai que pude decifrar todos seus segredos; foi ai que vi o quanto o
destino das pessoas pode ser cruel para uns e bondoso para outros; foi aí que
eu vi aquele cidadão, antes promissor Advogado conversando comigo em algumas
oportunidades nos corredores do Tribunal de Justiça e em determinada Delegacia
que trabalhei, assuntos relacionados a Processos criminais ou Inquéritos policiais;
foi aí que me lembrei de uma reportagem que um jornal sergipano fez sobre uma mãe
em desespero querendo libertar o seu querido filho,
estudioso, carinhoso, alegre e feliz com a vida, então Advogado preso nas
garras do crack; foi ai que soube que os familiares desse
cidadão tentavam interna-lo em clinica apropriada, mas ele se recusava tal
tratamento por conta do poder avassalador e sobrenatural do crack que o
arrastava cada vez mais para o fundo do poço;
foi ai que lembrei
que aquele Advogado entrou no imundo mundo do crack por conta de ter se
envolvido com um traficante após conseguir sua liberdade na Justiça; foi ai que
lembrei da citada matéria jornalística dizendo que aquele Advogado se desfez do seu escritório,
do seu carro, dos seus bens, vendendo ou trocando tudo pelo crack ou para pagar
dívidas com traficantes; foi ai que eu senti
que aquele cidadão abandonou a sua casa e passou a morar no submundo da
sociedade de Aracaju, nas ruas, no mercado central, nas marquises dos prédios
ou em pensões baratas junto à prostituição rasteira, com seus iguais, pelo
crack e para o crack;
foi ai que eu
imaginei que aquele cidadão então sobrevivia de algum dinheiro que ainda
restava da venda dos seus bens, ou quem sabe, de depósitos efetuados por
familiares na sua conta bancaria; foi ai que eu vi que um cidadão bem vestido,
alinhado, com terno, paletó e gravata impecáveis pode se transformar num mendigo,
num zumbi, num morto-vivo; foi ai que eu vi que a vida daquele cidadão era
somente o crack.
O crack é o grande
mal do século, o mal dos males, a pior de todas as drogas, que se não for um
mal que todos nós estejamos esclarecidos, irá nos afetar em qualquer momento de nossa vida ou na
vida de quem mais amamos, como de fato aconteceu com esse cidadão e sua família,
um jovem que estudou nos melhores colégios, que teve boas amizades, que se
formou em Direito, que se tornou um Advogado, que tinha um bom escritório, que pretendia
ser juiz por isso adormecia em cima de livros de tanto estudar, que tinha um
bom futuro pela frente, mas que por ironia do destino, pelo poder sobrenatural
dessa droga, tudo trocou pelo crack.
Rodeado e instado
pelos sentimentos humanitários de enternecimento, compaixão, piedade até porque
sempre fui dos maiores combatentes do crack, tanto na área repressiva quanto
preventiva, com prisão de grandes traficantes na minha careira policial e
inúmeros artigos de minha autoria pertinentes ao tema publicados em centenas de
sites do Brasil, Portugal, Angola e Moçambique, logo pensei em falar com ele,
oferecer algum tipo de ajuda moral, espiritual, mas seu olhar sisudo e com
possibilidade de algum tipo de agressão me afastaram, me reprimiram até porque
ele também não me
reconheceu.
Entretanto, todas as
vezes que caminho pela citada área de Aracaju, procuro em vão e insistentemente
com os meus curiosos olhos pelo triste cidadão entre os inchadinhos de cachaça
ou barbudinhos zumbis do crack em muitos espalhados pela redondeza. Se o
cidadão aceitou fazer tratamento, se fez ou faz tratamento em clinica de
recuperação não sei, só sei que o poder de imensa e infinita bondade do nosso Criador
pode sobrepor e derrotar o poder sobrenatural do crack como assim já fez com
muitos. Assim, um dia espero ver aquele alegre Advogado de volta aos corredores do Tribunal de
Justiça ou em Delegacias defendendo os seus clientes, menos os traficantes.
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